terça-feira, 19 de outubro de 2010

A um ausente

Tenho razão de sentir saudade,



tenho razão de te acusar.


Houve um pacto implícito que rompeste


e sem te despedires foste embora.


Detonaste o pacto.


Detonaste a vida geral, a comum aquiescência


de viver e explorar os rumos de obscuridade


sem prazo sem consulta sem provocação


até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.


Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.


Que poderias ter feito de mais grave


do que o ato sem continuação, o ato em si,


o ato que não ousamos nem sabemos ousar


porque depois dele não há nada?


Tenho razão para sentir saudade de ti,


de nossa convivência em falas camaradas,


simples apertar de mãos, nem isso, voz


modulando sílabas conhecidas e banais


que eram sempre certeza e segurança.


Sim, tenho saudades.


Sim, acuso-te porque fizeste


o não previsto nas leis da amizade e da natureza


nem nos deixaste sequer o direito de indagar


porque o fizeste, porque te foste.
 
(Carlos Drummond de Andrade)

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